Com tudo o que se tem dito e escrito sobre arrendamento nos últimos tempos, torna-se difícil, senão impossível, falar do tema sem paixão e sem cair em valorações, mais ou menos acesas, sobre os limites à actualização das rendas ou o arrendamento forçado de imóveis (privados) devolutos. E, como habitualmente, a paixão tolda raciocínios e objectividade.
É sentimento geral, tal como o texto constitucional consagra, que todos devem ter direito, para si e para as suas famílias, a uma habitação condigna. E que o Estado, Constituição dixit também, tem a obrigação de criar condições para que semelhante desiderato seja plenamente preenchido.
Mas longe de questões ideológicas, não é possível fixar objetivos sem um retrato lúcido das causas. Sem ele, imprecações contra vistos gold, alojamento local, especulação imobiliária e quejandos, arriscam ter conteúdo meramente panfletário e, com independência das medidas que sobre os mesmos se tomem, em nada contribuir para que o imperativo constitucional do direito a uma habitação condigna seja efetivamente preenchido.
Quem, como eu, já passou o meio século, lembra-se de uma Lisboa em que a regra, entre ricos ou pobres, era o arrendamento: Companhias de Seguros, Bancos e o que hoje, no mundo moderno dos chavões financeiros, se chamariam de family offices, eram os grandes proprietários da habitação urbana multifamiliar e, em consequência, os grandes senhorios. Ter propriedade para arrendamento habitacional era, por então, um negócio e tal facto atraía capital e estruturas profissionalizadas, e até uma multiplicidade de pequenos investidores, que mantinham o mercado em funcionamento. Todos sabemos os efeitos do congelamento das rendas na progressiva redução e quase extinção deste mercado e, pior, a contribuição de tal congelamento na ruína e decrepitude dos centros urbanos do país.
Facto é que, ao contrário de outros tempos, o arrendamento habitacional não é negócio. E no que não é negócio naturalmente ninguém investe. E se não se investe mesmo com rendas altas, muito pior será se o Estado limitar o crescimento daquelas. Como de nada lhe servirá proibir vistos gold ou alojamento local – que só fustigarão outros segmentos de negócio e em nada beneficiarão o arrendamento habitacional – ou redenominar o Balcão do Arrendamento para (não) funcionar nos mesmos termos, ou criar insólitas garantias públicas de renda que, suponho, obrigarão já castigados senhorios a fazerem vias crúcis em inúmeros departamentos públicos para receberem rendas que o arrendatário não pagou. E porque nada disto tranquilizará investidores e mitigará o risco do negócio, resta ao Estado assumir-se como o grande senhorio do país, funções de que, (in)felizmente e como patente, pouco ou nada sabe e que nunca deveria assumir directamente.
Acreditar que o mercado de arrendamento habitacional ganhará nova pujança mercê do agigantar de um “parque público de habitação” ou de meia dúzia de fogos que pequenos proprietários serão forçados a “arrendar” por imposição do Estado, é um acto de fé bem pouco consentâneo com um Estado que se quer laico e, uma vez mais, o adiar de um problema cujo impacto se agiganta a cada ano. E numa altura em que muitos investidores de vulto, por critérios de ESG (Environment, Social, Governance) devem diversificar carteiras, o mercado de arrendamento habitacional será por estes e uma vez mais desconsiderado.
Ora, querer um mercado de arrendamento habitacional não é um exercício de liberalismo absurdo. Para além de indissociável do direito a uma habitação condigna, é também o direito a poder enjeitar, para os que assim o entendem, situações de compropriedade por duas ou três décadas com a Banca ou o direito ao exercício de uma opção flexível por contraponto à rigidez que a propriedade representa. E o Estado tem a obrigação de garantir que tal mercado existe para todos e não apenas para os de mais fracos recursos. A estes, no contexto de um mercado que funciona, caber-lhe-á, não fazer casas e converter-se em grande senhorio, mas criar mecanismos financeiros que apoiem directa e efectivamente o pagamento das rendas.
Fomentar o mercado de arrendamento só é possível com um olhar global sobre a realidade. Com estudos e dados estatísticos sobre a oferta e a procura. Com análises sérias e não programáticas. E com a coragem de perceber que se o arrendamento habitacional não for novamente um “negócio”, suscetível de análise, pelo menos a médio-prazo, de custos e proveitos, de uma quantificação aproximada do risco e, por tal facto, capaz de atrair grandes investidores como o faz o mercado de escritórios ou o de retail, certamente que poderá haver arrendamento habitacional público, mas continuará a não existir um mercado de arrendamento para habitação.
Do que li no Preâmbulo do projecto de diploma que consubstancia o chamado “pacote” Mais Habitação, tal análise parece inexistir. Entre considerações programáticas e conjunturais tendentes a justificar o insucesso das diversas intervenções legislativas do passado recente, fica a ideia de que, ao invés de uma estratégia global para incentivar o negócio, continuamos a experimentar remédios dirigidos às mesmas maleitas em que, pelos mesmo motivos, fracassaram os remédios anteriores.
Apostar tudo em remédios torna-nos apenas remediados. Estou em crer que todos, até o Estado, desejamos bem mais que isto.
Artigo de Opinião de Maria João Canha, Head of Consultancy, publicado na Magazine Imobiliário, dia 15 de Junho 2023